Pelo que ficou estatuído no § 7.º, o condenado "iniciará" o cumprimento da pena em regime fechado. Isso significa que é possível a progressão de regime. A melhor doutrina afiança o acerto do legislador.[25] Quanto ao delito omissivo (§ 2.º), no entanto, como é punido com detenção, está fora da exigência do cumprimento inicial em regime fechado. Aplica-se normalmente o CP: o máximo que se pode impor, no princípio, é o regime semi-aberto.
A tortura, na configuração constitucional, ao lado do terrorismo, do tráfico de drogas e dos crimes definidos em lei como hediondos, constituía um bloco de infrações com tratamento jurídico único (muito distinto, no entanto, das demais infrações penais). Seja em nível constitucional, seja em nível infraconstitucional, o "bloco" referido tinha regime jurídico especial unitário. No plano ordinário, tudo era regido pela Lei 8.072/90. Em nada qualquer uma dessas infrações diferenciava-se das outras. Agora, com a Lei 9.455/97, admite-se progressão na execução da pena do crime de tortura.
Disso pode-se extrair, como bem destacou Alberto Silva Franco, a seguinte conclusão: "Não há razão lógica que justifique a aplicação do sistema progressivo aos condenados por tortura e que, ao mesmo tempo, se negue igual sistema aos condenados por crimes hediondos (...) a extensão da regra do § 7.º do art. 1.º da Lei 9.455/97, para todos os delitos referidos na Lei 8.072/90, equaliza hipóteses fáticas que estão constitucionalmente equiparadas e restabelece, em sua inteireza, a racionalidade e a sistematização do ordenamento penal".[26]
No mesmo sentido, Ney Moura Teles[27] e o famoso acórdão da Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo Min. Luiz V. Cernicchiaro.[28] Para Oswaldo Duek Marques, "nada impede possa dar-se uma interpretação sistemática, para estabelecer o tratamento mais benéfico aos crimes previstos na Lei 8.072/90".[29]
Na esteira do entendimento que acaba de ser citado vem o HC 7.197-DF, do STJ, 6.ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 04.06.1998, DJU de 03.08.1998, p. 325. V. ainda: HC 7.185-DF, STJ, 6.ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 19.05.1998, DJU de 10.08.1998, p. 81.
A introdução no sistema penal brasileiro do regime "integral" fechado (Lei dos Crimes Hediondos) foi um dos maiores equívocos legislativos já ocorrido: primeiro porque não havia autorização constitucional para isso (resultando violado o princípio da individualização da pena); em segundo lugar porque não resolveu em nada o problema da criminalidade violenta; em terceiro lugar porque retirou do preso a esperança de uma progressão, que favorece a ressocialização e o bom comportamento; por último porque acabou desencadeando a maior avalanche de fugas e rebeliões, jamais vistas no sistema penitenciário brasileiro.
Está correta, nesse ponto, a Lei de Tortura, ao prever a progressividade. Mas o melhor caminho, de lege ferenda, será permitir a progressividade em todos os delitos, exigindo-se, no entanto, para crimes violentos, o cumprimento de uma parcela maior da pena em cada regime. O atual patamar de um sexto, para crimes que realmente perturbam o convívio social, é demasiadamente inferior ao que se imagina ser o equilibrado e político-criminalmente correto.
A questão da extensão da progressividade, prevista na Lei 9.455/97 para os crimes de tortura, a todos os crimes hediondos e equiparados, no entanto, não mereceu o apoio majoritário da jurisprudência. Vale recordar que no Colendo Supremo Tribunal Federal a tese da aplicação analógica (in bonam partem) da lei citada a todos os crimes hediondos não foi aceita (STF, HC 76.371-SP, j. 25.03.1998). No Egrégio TJSP vem predominando também esse entendimento restritivo (v. Ap.Crim. 229.0873/7, rel. Silva Pinto, j. 20.10.1997). Não é distinto o pensamento do STJ:
"STJ, RHC 9.900-SP, Hamilton Carvalhido, j. 12.09.00, DJU de 18.12.00, p. 239:
"1. Em se constituindo em matéria da norma infraconstitucional, a disciplina da individualização da pena, em nada ofende a Constituição da República a supressão da discricionariedade do juiz na fixação do regime prisional, como na Lei dos Crimes Hediondos.
2. O inciso XLIII do artigo 5º da Constituição da República apenas estabeleceu "um teor de punitividade mínimo" dos ilícitos a que alude, "aquém do qual o legislador não poderá descer", não se prestando para fundar alegação de incompatibilidade entre as leis dos crimes hediondos e de tortura. A revogação havida é apenas parcial e referente, exclusivamente, ao crime de tortura, para admitir a progressividade de regime no cumprimento da pena prisional".
13. Extraterritorialidade da lei penal brasileira
Está previsto no art. 2.º:
"Aplica-se a Lei de Tortura a crimes ocorridos fora do território brasileiro desde que (a) a vítima seja brasileira ou (b) encontre-se o agente em local sob jurisdição brasileira".
De se observar que o dispositivo legal nada diz sobre o sujeito ativo: pode ser brasileiro ou não.
Duas interpretações possíveis para esse assunto:
(a) as duas exigências do art. 2º são autônomas (é a nossa posição): sendo brasileira a vítima da tortura, a aplicação da lei brasileira é incondicional (não é preciso o atendimento ao § 2.º do art. 7.º do CP); não sendo a vítima um brasileiro, só será punido o autor da tortura pela lei brasileira se ingressar no âmbito da jurisdição nacional. Essa é a condição exigida (única) para se punir o autor da tortura. Não importa se esse autor é estrangeiro. Não interessa a nacionalidade da vítima;
(b) as duas exigências do art. 2º não são autônomas: quando a vítima foi brasileira e o crime tiver ocorrido no estrangeiro, pode ser punido no Brasil desde que o autor da tortura ingresse no Brasil.
14. Vigência e irretroatividade
Pelo que se extrai do art. 3.º, a lei entrou em vigor no dia 08.04.1997. Só vale para fatos ocorridos a partir desta data. Não é retroativa. Lei nova incriminadora não retroage para alcançar fatos pretéritos.
15. Revogação do art. 233 do ECA
O art. 233 do ECA previa o crime de tortura contra criança ou adolescente, mas não descrevia a conduta, isto é, não definia o que se deve entender por tortura. Apesar disso, violando flagrantemente o princípio da legalidade, o Colendo Supremo Tribunal Federal entendeu ser válido tal dispositivo.[30]
Na ementa desse julgado do STF, relatado pelo Min. Celso Mello se lê:
"O crime de tortura, desde que praticado contra criança ou adolescente, constitui entidade delituosa autônoma cuja previsão típica encontra fundamento jurídico no art. 233 da Lei nº 8.069/90. Trata-se de preceito normativo que encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza-se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade;
A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX);
A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA.
A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana.
A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.
NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS.
O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine).
TORTURA CONTRA MENOR PRATICADA POR POLICIAL MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO.
O policial militar que, a pretexto de exercer atividade de repressão criminal em nome do Estado, inflige, mediante desempenho funcional abusivo, danos físicos a menor eventualmente sujeito ao seu poder de coerção, valendo-se desse meio executivo para intimidá-lo e coagi-lo à confissão de determinado delito, pratica, inequivocamente, o crime de tortura, tal como tipificado pelo art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, expondo-se, em função desse comportamento arbitrário, a todas as conseqüências jurídicas que decorrem da Lei nº 8.072/90 (art. 2º), editada com fundamento no art. 5º, XLIII, da Constituição.
O crime de tortura contra criança ou adolescente, cuja prática absorve o delito de lesões corporais leves, submete-se à competência da Justiça comum do Estado-membro, eis que esse ilícito penal, por não guardar correspondência típica com qualquer dos comportamentos previstos pelo Código Penal Militar, refoge à esfera de atribuições da Justiça Militar estadual (STF, HC 70.389-5-SP, rel. Min. Sydney Sanches, rel. p/acórdão Min. Celso de Mello, DJU de 10.08.01, p.3)".
Se de um lado recebeu o apoio de Luíza Eluf,[31] de outro lado foi acertadamente criticado por Sylvia Steiner.[32] Esse art. 233 acabou sendo revogado expressamente pela lei de tortura (Lei 9.455/97) (art. 4.º).
É inconsistente o argumento de que seja injusta a punição menos severa da tortura contra criança ou adolescente quando resulta morte.[33] Pena do ECA para a hipótese: de quinze a trinta anos; pena da Lei 9.455/97: de oito a dezesseis anos, com aumento de 1/6 a 1/3. A pena do ECA era desarrazoada, desproporcional. Mesmo porque cuida-se de crime preterdoloso. O ECA punia crime preterdoloso com pena maior que o homicídio qualificado pela tortura (totalmente doloso). Está certa a nova lei nesse ponto. É mais razoável.
Em virtude da revogação expressa do art. 233 do ECA (pelo art. 4º da Lei 9.455/97), teria ocorrido abolitio criminis? A resposta é negativa, tal como decidiu o Superior Tribunal de Justiça, nestes termos:
"STJ - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS Nº 10.049 - CE (2000/0047292-1) (DJU 18.02.02, SEÇÃO 1, P. 494, J. 06.12.01)
RELATOR : MINISTRO VICENTE LEAL
RECORRENTE: ANTÔNIO FERREIRA MENDES
ADVOGADO : ANTÔNIO FERREIRA MENDES
RECOR
18. Lei dos crimes hediondos e tortura
Aquela proibia para a tortura o indulto; esta não o proíbe; aquela vedava a liberdade provisória; esta não repete semelhante vedação; aquela previa regime fechado integral; esta admite a progressividade.
No que concerne à liberdade provisória, remarque-se que a jurisprudência vem entendendo que essa possibilidade só vale para a tortura e não se estende para os outros crimes hediondos:
"I. Em se tratando da prática, em tese, de delito elencado como hediondo, em um primeiro juízo não se admite a concessão da liberdade provisória, sendo que eventuais condições pessoias favoráveis do paciente, por si só, não lhe garantem o direito subjetivo à revogação da custódia cautelar, se outros elementos recomendam a segregação provisória.
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